Ir para opininão de especialistas

Descarbonização

O que acontece com o carro elétrico?

Descarbonização carros elétricos
Daniel Amat

Daniel Amat

Consultor especialista em transportes

Uma vez contaram-me que, numa fábrica, depois de mudarem de fornecedor de ferramentas, a taxa de brocas partidas pouco tempo após o uso aumentou drasticamente. Depois de muitas investigações, discussões com a empresa fornecedora e testes de qualidade, não encontraram nenhuma razão para este aumento repentino. No entanto, o problema não estava na própria ferramenta, mas nos empregados que se recusavam a mudar de marca e sabotavam as novas ferramentas.

O carro elétrico está connosco há muitos anos. Foram muitos os protótipos e automóveis comerciais que, durante várias gamas, tentaram convencer o público, com sucesso díspar e caindo no esquecimento durante algum tempo. Isto também acontece com outras tecnologias que não conseguem penetrar completamente e acabam relegadas para a gaveta até a próxima oportunidade, como aconteceu recentemente com o cinema e a televisão em 3D. No entanto, o interesse da União Europeia em alcançar a neutralidade climática pode ser o impulso decisivo para a eletrificação.

Até ao anúncio da proibição da venda de veículos com motores de combustão interna a partir de 2035, a indústria europeia centrava os seus esforços na sua máquina de fazer dinheiro: o motor a gasóleo, cujos veículos quase monopolizavam o mercado na Europa. A UE tem vindo a lançar consecutivamente planos para a redução das emissões e melhoria da eficiência dos motores de combustão interna, desde a norma Euro 1 em 1993 até à última Euro 6, em vigor desde 2015.

O auge dos híbridos e a complexidade da transição elétrica

Neste contexto, a indústria focou-se em cumprir as normas de emissões e segurança em vigor, o que elevou consideravelmente o preço, enquanto reduziu drasticamente a poluição provocada pelos veículos com motores de combustão interna alternativa (MCIA). Este fenómeno, que à primeira vista parece benéfico para os cidadãos, gerou um ciclo forçado de investimento em inovação, com prazos rigorosos para não ficar fora do mercado.

Embora a legislação em vigor favorecesse os fabricantes ao retirar do mercado os veículos de baixo custo que não cumpriam as normas, também deu origem a fracassos espetaculares, como o dieselgate do grupo Volkswagen, cujo esforço para simular o cumprimento das rigorosas normas de emissões se transformou num escândalo internacional.

Embora os motores a gasóleo atuais sejam consideravelmente mais ecológicos do que nas décadas passadas, uma combinação de fatores, incluindo o dieselgate, a guerra na Ucrânia e a equiparação de impostos com a gasolina, relegou o MCIA a gasóleo para um papel secundário nas novas matrículas.

De qualquer forma, desde a sua aprovação em 2022, a proibição da venda de veículos com MCIA deixou de ser um incentivo à transição e está a transformar-se em pregos no caixão desta tecnologia. Com o tempo, no entanto, o tão aguardado carro elétrico de massas ainda não se materializou. A pressão aumentava com a regulamentação das Zonas de Emissões Reduzidas nas cidades, mas os veículos puramente elétricos que correspondessem às expectativas de procura e o fizessem a um preço razoável ainda não estavam disponíveis.

Entretanto, os veículos híbridos da Toyota continuavam a aumentar as suas vendas, tornando-se numa solução temporária graças ao selo ECO, que lhes dava uma grande flexibilidade para circular livremente nas grandes cidades. Diante desta situação, outras marcas começaram a lançar modelos híbridos enquanto continuavam a trabalhar no futuro do carro elétrico. Os desafios tecnológicos associados à produção de veículos elétricos de massas foram subestimados, uma vez que se revelaram dispendiosos em termos de desenvolvimento e fabrico, e com difícil acesso a matérias-primas como as terras raras.

Em contraste com a Europa, o Japão – e mais especificamente a Toyota – adotou uma abordagem muito diferente em relação ao motor a gasóleo. Desde os anos 90, o Governo japonês impulsionou campanhas para abandonar esta tecnologia, dado que na altura foi considerada responsável por elevados níveis de poluição e por afetar gravemente a qualidade do ar nas grandes cidades.

Como consequência, as marcas japonesas focaram-se em desenhar motores a gasóleo exclusivamente para o mercado europeu. A Toyota, no entanto, optou por abandoná-lo e focar-se numa alternativa mais limpa: o motor híbrido a gasolina-elétrico, que lançou no mercado em 1997. Esta visão a longo prazo permitiu que os seus motores híbridos se mantivessem como os mais vendidos durante anos. Apoiada nesta vantagem, a Toyota não considerou prioritário o carro elétrico a bateria e começou a desenvolver outra tecnologia disruptiva, nomeadamente o motor de hidrogénio, que a marca considera ser o verdadeiro futuro da automação.

Ninguém contou com a China

Entretanto, as imagens que nos chegavam das grandes cidades chinesas mostravam ruas repletas de bicicletas, onde ter um automóvel era um luxo reservado apenas a alguns. No entanto, com a mudança de século, a deslocalização da produção e a exigência de que não só as fábricas, mas também os centros de I&D, tivessem sede no seu território, o gigante asiático começou a produzir alguns dos modelos de automóveis mais conhecidos a nível global.

Inicialmente, com o conhecimento adquirido na produção de veículos, começaram a fabricar versões dos modelos mais populares das marcas europeias. Como estes carros eram exclusivamente destinados ao mercado local, as leis de proteção de propriedade intelectual das empresas europeias não se aplicavam. Desta forma, a China tornou-se num país com grande capacidade de fabrico de veículos e, graças aos seus preços competitivos, qualquer cidadão chinês podia permitir-se adquirir o seu próprio carro.

Com a chegada da nova onda de eletrificação liderada pela Tesla Motors – um ator que nada tinha a ver com a indústria automóvel tradicional – provou-se que era possível criar um automóvel elétrico bem-sucedido sem a experiência das grandes marcas, e com boa aceitação por parte do público. Diante deste panorama, a indústria automóvel chinesa começou a desenhar os seus próprios veículos elétricos. Mesmo empresas tecnológicas como a Xiaomi entraram no mercado, oferecendo o seu próprio modelo de automóvel elétrico.

O que ninguém antecipava era o contexto que rodeia esta indústria. Na China, não existe uma tradição sólida no uso de veículos com MCIA, nem as suas empresas estão estruturadas como os gigantes europeus do sector. Isso permitiu que a indústria automóvel chinesa se adaptasse rapidamente ao novo paradigma e que não tenha gerado resistência à mudança por parte dos consumidores. Hoje, a China eletrificou praticamente toda a sua frota automóvel, e os carros elétricos europeus têm um impacto irrisório nas vendas desse país. Até o mercado de luxo, tradicionalmente dominado pelas marcas europeias, está a ser conquistado pelas marcas chinesas.

Na Europa, por outro lado, continuamos a discutir como vamos eletrificar a nossa frota automóvel. Tal como os trabalhadores da fábrica mencionada no início, no Velho Continente estamos a experienciar uma grande resistência à mudança, pois o veículo MCIA está profundamente enraizado na cultura ocidental. Além disso, a experiência tida com os veículos elétricos promovidos como os primeiros automóveis elétricos da nova era geraram grandes desilusões.

Muitos destes veículos não cumpriram as expectativas dos condutores: a durabilidade das baterias foi deficiente (algumas perderam quase toda a sua autonomia em menos de cinco anos), os clientes cujas baterias ficaram sem autonomia foram abandonados pelo serviço de assistência, e alguns veículos acabaram no desmantelamento por um pequeno toque, devido ao elevado custo de substituir o módulo da bateria, superior ao valor do próprio veículo.

Mas não são só os problemas tangíveis que desagradam o consumidor. Basta recordar as críticas na Fórmula 1 desde a introdução da fase híbrida, onde se dizia que o som dos motores já não era tão apelativo como o dos antigos V10. Mesmo atualmente continuam a ser publicadas notícias sobre as tentativas da Federação Internacional do Automóvel de recuperar esse rugido característico e desejado para os monolugares.

Um futuro incerto para a indústria automóvel europeia

Neste contexto, a indústria automóvel europeia enfrenta um desafio complexo. Por um lado, os seus veículos elétricos não são competitivos face aos chineses, nem em preço nem em acabamentos. Os consumidores estão a virar-lhes as costas tanto pelo elevado custo como por não cumprirem as suas expectativas. Além disso, os investimentos em inovação não estão a ser sustentados pelas vendas de novos veículos, e o tempo é escasso.

Por outro lado, fontes do sector asseguram que as ajudas à compra são insuficientes. A carga burocrática, os longos prazos e a incerteza que isto gera também não ajudam. Uma redução direta do IVA na aquisição destes veículos poderia ser uma solução mais eficaz, segundo essas fontes. A esta situação junta-se a concorrência desleal da China, com subsídios praticamente omnipresentes na cadeia de fornecimento, colocando a indústria europeia numa situação delicada.

No entanto, estão a ser tomadas medidas para dar algum alívio ao sector. Entre elas destacam-se os novos direitos aduaneiros sobre os veículos chineses, o desenvolvimento de combustíveis sintéticos para reaproveitar os MCIA, e a flexibilização das normas europeias. Recentemente, a Comissão Europeia anunciou ajustamentos nos objetivos de redução de CO2 e outras medidas protecionistas, devido às tensas relações comerciais com a China e os Estados Unidos. Estas iniciativas foram recebidas com esperança pelo sector. Conseguirá a Europa salvar a sua indústria automóvel?

Pessoa especialista

Daniel Amat
Daniel Amat

Sede de Sevilha

Consultor especialista em transportes

Não se trata do setor, trata-se do projeto

O importante não é continuar a andar, mas sim saber para onde ir. A nossa taxa de sucesso de 37 % prova que sabemos como orientar os nossos clientes.

Domínios de especialização